quarta-feira, 26 de junho de 2013

António Aleixo - 2


Vinte anos depois da morte do poeta, ouvimos, encantados, versos repassados de oportunidade, de traço simples e palavras comuns.

Era na simplicidade, fácil de perceber e profunda no entender, que residia o encanto e popularidade dos versos de António Aleixo – um dos maiores poetas populares portugueses:

Sem mais comentários, deixamos um pequeno entrecho do Zé Carrapato, montanheiro que se juntou muitas vezes com o poeta, nos mercados de Loulé, chegando a deixar de apregoar o seu jogo para seguir o “senhor Aleixo” – como dizia - e ouvir as suas prosas.

Lembro, quando conversávamos, em Loulé, e passaram duas mulheres, de preto:

Certas viúvas discretas
De luto pesado em cima
Lembram cachos de uvas pretas
A pedir outra vindima.
  
Mais à frente, na nova avenida, exclamou o “senhor Aleixo”:

Vem da serra um infeliz
Vender sêmea por farinha;
Passado tempo já diz:
- Esta rua é toda minha!
  
Cruzámos com o Dr. Madeira, Administrador do concelho. E saiu outra pérola:

Há tantos burros mandando
Em homens de inteligência
Que às vezes fico pensando
Que a burrice é uma ciência
  
Logo adiante um pobre que numa lenga-lenga chorosa pedia esmola. Disse o poeta:

Se pedir, peço cantando;
Sou mais atendido assim.
Porque se pedir chorando,
Ninguém tem pena de mim.
  
Encontrámos o sr. José Neves Cabrita, da Bordeira; trabalhava em campas, jazigos….

Um homem sonha acordado,
Sonhando a vida percorre.
E desse sonho dourado

Só acorda quando morre.

terça-feira, 18 de junho de 2013

António Aleixo – 1


 Não me canso de reler os livros de António Aleixo e, quando posso, vou aumentando o pecúlio das quadras extra – livros.

Vem este meu gosto dos anos 70, dos serões n’O Meu Café, em Faro, com os contadores de histórias e os poetas populares algarvios.

O Pardal, da Quarteira, era imparável quando começava a desfiar as histórias que, anos mais tarde, seriam editadas no livro “Em cima do mar salgado”.

O Ti Liberato tinha as suas glosas, mas fazia mais o seu número em prosa, descrevendo peripécias e aventuras que trazia do mar, todos os dias.

O ponto alto era o momento em que cada um dos presentes dizia quadras do Aleixo, menos conhecidas, ou inéditas, com traços de verdadeira realidade. 

O Ti’Zé da Alfarrobeira, que vendeu cautelas ao lado do António, como ele dizia, lembrava:

Um dia, no mercado da Quarteira, acenei ao António: Olá “poeta!”…Ele respondeu:

Poeta, não, camarada
Eu também sou cauteleiro;
Ser poeta não dá nada
Vender jogo dá dinheiro.

Depois, ao dar-lhe parabéns por ter sido rei dos jogos florais, de Faro, no dia anterior:

Ontem rei, hoje sem trono
Cá ando outra vez na rua.
Entreguei a roupa ao dono
E a miséria continua.

Já na pensão do Pontes, onde comíamos um carapau, cruzando com uma “flausina”, atirou:

Riem d’outras com desdém
Certas damas bem vestidas;
Quantas…p’ra vestir bem
Se despem às escondidas.

E, quando lhe apontaram duas “suecas”, loiraças e muito envolvidas, atrás de uma tosta, com um ar de compreensão, eis o comentário do António:

Mas que grande aberração!
Porque será que fazem isso!...
A comerem pão com pão…
Quando é tão bom com chouriço….

domingo, 9 de junho de 2013

A carroça vazia…


O Ti’Zé era um homem meticuloso, sério e honrado no conceito das gentes do povo, amigo de ajudar e muito observador. 

Não sabia ler nem escrever, nunca passara muito tempo fora, mas tinha boa memória e falava, pausadamente. 

Era ferreiro e ferrador para a terra e redondezas.

Havia um costume que cultivava desde pequeno e por isso lhe chamavam, na terra, o doutor. 

É que não deixava de juntar um ensinamento sempre que contava qualquer história, ou resumia qualquer facto, ou acção, que presenciasse, ou lhe chegasse aos ouvidos. 

Era, o que o povo diz, muito examinado!... 

E eu junto: um grande mestre, pois foi com ele que aprendi a caldear o ferro e a temperá-lo consoante a utilização que se lhe quer dar. Um bico de arado não é uma ferradura duma besta.

Ao ver-me meio desnorteado com o rumo da conversa, o meu padrinho, ferreiro na aldeia e um grande especialista na fabricação de balanças romanas, que exportava para todo o país, aproveitou uma pequena pausa e pegando num conjunto de papéis, de várias cores e tamanhos e na sua maioria pouco limpos, catou uma folhita, bastante amarelecida e com sinais de bastante manuseamento e estendeu-ma.

 Lê, trata-se de um ensinamento do meu mestre, que Deus tem, e que, como vês, eu escrevi aí e leio muitas vezes.

“Um dia fui com o ti’Zé à Ribeira para arrancarmos uma leirazita de batatas, no chão ao pé da represa da Cabeça Gorda. 

Passámos o alto da Chã e ao metermos para a ladeira do Machoso, deixámos o caminho e fomos pelo atalho do carreirito pelo meio do bastiço de pinheiros. 

Numa clareira, no meio dos pinheiros, de onde se não via o caminho de carro, o ti’Zé parou e disse-me:

Ouves os passaritos que andam a fazer os ninhos, e que mais?

Ouço o barulho dum carro que vai no caminho.

Muito bem, respondeu ele. E vai cheio ou vazio?

Ah! Isso não posso saber, não sou bruxo!

Nem é preciso, homem. Concentra-te bem e vais ver que sabes!... E apercebendo-se que eu não estava a chegar lá, acrescentou:

Vai vazio, homem!... Ora ouve com atenção!... Achas que se fosse cheio fazia aquele barulho todo? Quanto mais vazia for a carroça mais barulho faz, não te parece. E ficou calado a olhar para mim!...”

Um dia, já depois dele ter morrido, escrevi esse papel para, de vez em quando, o ler. 

E, sempre que oiço uma pessoa que fala muito, inoportuna, interrompendo todo o mundo, tenho a impressão de ouvir o meu mestre, dizendo-me:


Quanto mais vazia vai a carroça, maior é o barulho que faz!... 

E, voltando-se para a bigorna continuou a dar forma ao ferro que estava a malhar. 

Era assim o meu padrinho...