Ouvi, há tempos, uma palestra sobre “amizade e vizinhança”, em que Ápio Sotomayor, ulissipólogo e estudioso das pequenas/grandes coisas da Sociologia, lamentava o estado, de quase desuso, em que vêm caindo as relações de amizade, entre vizinhos.
A televisão, a segurança nas ruas, o ritmo da vida e a falta de disposição a que conduzem os problemas e dificuldades no dia-a-dia, são, dizem os sociólogos, alguns dos factores do afastamento, isolamento e capsulação das pessoas.
Porém, em todos os tempos, estes problemas foram tratados e comentados por consagrados autores. Com recorte e enquadramento social a mais de um século de distância, cremos que vale a pena reler este soneto de Camilo e atentar na sua actualidade.
Encontrámo-lo publicado, como texto de leitura, num livro de Língua Portuguesa em uso nas ex – Escolas Técnicas:
Os meus amigos
Amigos cento e dez e talvez mais,
Eu já contei! Vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
Mais ditoso mortal entre os mortais.
Amigos cento e dez, tão serviçais,
Tão zelosos da lei da cortesia,
Que eu já farto de os ver, me escapulia
Às suas curvaturas vertebrais.
Um dia adoeci profundamente,
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
Que não desfez os laços quase rotos.
Que vamos nós (diziam) lá fazer,
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos...
Camilo Castelo Branco
(Ao amigo JCG, na passagem do seu 70º aniversário)