sábado, 8 de outubro de 2011

Vale de incenso



A nossa horta – desde sempre chamada Vale de Incenso – era um rectângulo de terra plana, muito fértil e dada a mimos, com uns sessenta metros por trinta.

Isolada do caminho de carro, que lhe passava a oeste, por um ribeirito, mais recheado de balças, que cheio de água, e com duas leiras de idêntico tamanho, uma pelo norte e outra pelo sul e pertencentes ao Ti’Manel Rosa.

Tudo ali nas abas da serra, a uns metros dos pinheiros.

Aquilo tinha sido tudo de um dono e foi feito em três sortes, herdando o meu avô a do meio.

A água vinha de uma represa que vivia dos sobejos da nascente da fonte velha, canalizada dali até ao centro da aldeia.

Era como que uma piscina privativa da rapaziada, com os seus três metros por dois e uma média de sessenta centímetros de fundo.

Água sempre nova, regada todos os dias, era também usada para lavar a roupa.
A partilha era de três dias: dois para o Ti’Manel Rosa e um para nós.

Além dos talhões com uns vinte a trinta pés de melão e outros tantos de melancia, plantavam-se três ou quatro filas de tomateiros e o resto era milho, como que emoldurando os melões, melancias e tomates.

Na estrema sul, a uns quatro metros do ribeiro, restos de um pessegueiro de pêssegos carecas – sem sombra de dúvida os melhores que alguma vez pude comer – e uma figueirita de figos pretos, de que os maiores fregueses eram os pássaros.

Na orla nascente, junto da levada que separava a horta do alqueive, onde se semeava o trigo da casa, havia as duas macieiras maiores e mais imponentes que alguma vez vi.

Todos os anos, fazendo jus ao quarto da horta que tinham por sua conta e a uma boa parte do alqueive, davam uns quarenta ou cinquenta cestos de maçãs encarnadinhas, grossas, e muito saborosas, onde raramente se via algum bicho.

Aquelas macieiras foram a fonte de receita para os pagamentos de livros e material escolar que eu e meus irmãos comprávamos, a crédito, no café e papelaria do senhor João, lá em Mação.

As maçãs ficavam encomendadas de uns anos para os outros e quando meu pai ia, aos domingos fazer o nosso reabastecimento, levava, sobre o aparelho da mula, os cabazes de maçãs para os fregueses certos.

Nós comíamos as menos gradas, as que caíam e as tocadas.
O pessegueiro era o pincho ideal para os picanços que ali vinham afiar o bico e, muitas vezes, atraídos pela agúdia da costela que os esperava, iam engrossar o arame dos taralhões, no tempo deles.

Chegava a apanhar ali quatro, ou cinco passaritos numa manhã.

Lá fora, no cômoro que separava o nosso restolho dos da Horta Velha e Pardieiro, dois cabeceiros de formigas eram a minha fonte de abastecimento das agúdias – formigas de asas -, para armar aos taralhões.

Mas as macieiras, que toldo natural, que sombra e frescura e que odor!...

Ainda hoje, cinquenta anos passados, recordo e me faz recordar os livros que lá li e as prosas de amor que lá foram inspiradas.

Recordações inesquecíveis, que nada consegue apagar.

Talvez seja este o encanto que nos formou no amor pela Natureza...

O Vale de Incenso é um desses lugares paradisíacos, cuja magia nos ajudou a ser como somos.

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